Cohn-Bendit pede desculpas
Mário Maestri *
Correio da Cidadania
Daniel Cohn-Bendit acaba de pedir às novas gerações que esqueçam o Maio Francês, já que não mais existiria o mundo contra o qual lutou há quarenta anos. Para não deixar dúvidas sobre o dito, pontificou que aquele «passado morreu» definitivamente, antes de sair em tour mundial para divulgar livro de entrevistas denominado inicialmente com o título lapidar de Forget 68. Negando a contemporaneidade de 1968, Cohn‑Bendit associa-se com destaque ao esforço em reduzir aquelas jornadas a mera mobilização juvenil contra o mundo dos genitores. «Sessenta e oito foi a revolta dos jovens contra o mundo criado pelos seus pais [...] após a guerra, [...] rígido e conservador [...]», pontificou o ex-militante do Movimento 22 de Março, da Universidade de Nanterre. Os novos direitos das mulheres, homossexuais, deficientes, etc., e a consciência ecológica de pós‑68 teriam criado um mundo verdadeiramente novo, tornando anacrónicas lutas velhas de quatro décadas, inadequadas à sociedade que soube recriar‑se permanentemente.
Os sucessos de 1968 foram esforço de ruptura revolucionária da ordem capitalista e de construção de socialismo democrático e revolucionário que garantisse, nos limites das possibilidades históricas, a realização da humanidade. Foram movimentos de rebeldia com epicentros nos EUA, Itália e Alemanha Federal, que alcançaram ápice em 1968 na greve geral dos trabalhadores franceses, desmobilizada e liquidada pelo Partido Comunista Francês. Às jornadas de 1968 seguiram-se duríssimas lutas mundiais entre o capital e o trabalho, com confrontos memoráveis como os do Vietname, Laos e Camboja; do Chile (1969-73); de Portugal (1974‑76); da Nicarágua (1979-1990), etc. Enormes movimentos de insurgências pelo tsunami liberal‑conservador que, sobretudo desde 1989, engoliu através do mundo, com fome pantagruélica, conquistas sociais obtidas nas décadas anteriores.
É precisamente a vigência das reivindicações, esperanças e experiências de 68 que enseja o esforço mundial, fortemente midiatizado, pelo seu arquivamento definitivo. Projecto que se apoia fortemente em muitos dos então jovens protagonistas daqueles sucessos, conquistados sob a dura pressão da derrota histórica dos trabalhadores, pelas benesses, facilidades e seguranças garantidas aos que defendiam com destaque os privilégios contra os quais lutavam no passado.
Os grandes movimentos sociais são normalmente associados a indivíduos tidos como protagonistas excelentes, não raro por conseguirem orientar os sucessos que vivem segundo as suas necessidades e tendências profundas. É quase automática a identificação de Marat e Robespierre à Revolução Francesa, de 1789; de Zapata e Pancho Vila à Revolução Mexicana, de 1910; de Lenin e Trotsky à Revolução Russa, de 1917; de Fidel e do Che à Revolução Cubana, de 1959. Há, porém, jornadas luminares como a Comuna de Paris, de 1871, que passaram à historia sem associação a indivíduos singulares, sobretudo como fruto dos esforços e sacrifícios de milhares de trabalhadores e populares, homens e mulheres – os communards.
Nos tempos actuais, acções multitudinárias são fusionadas a indivíduos, não raro por razões fortuitas e, cada vez mais, pelas necessidades da mídia, transformando-os, mais do que em líderes, em verdadeiros símbolos dos movimentos em questão. Foi o que de certo modo ocorreu com o Maio Francês, ligado fortemente às imagens de jovens como Daniel Cohn-Bendit, Alain Krivine e Jacques Sauvageot que, mesmo através das suas pequenas organizações, pouco ou quase nada influenciaram sucessos que transbordaram rapidamente os marcos da mobilização estudantil, ao serem abraçados fortemente pelas classes trabalhadoras e populares.
A fusão da história a indivíduos tende à qualificação da primeira a partir de actos privados ou públicos dos segundos: actos realizados eventualmente no calor dos sucessos, alguns anos após eles ou até mesmo décadas mais tarde. Essa visão ingénua dos sucessos sociais nasce da compreensão da história como produto da acção de homens providenciais, de naturezas transcendentes ao próprio devir histórico. Para tal percepção, para o bem e para o mal, as acções desses demiurgos contaminariam e definiriam os factos históricos que eles teriam criado.
Não há razão para duvidar da honestidade da defesa, em 1968, de Daniel Cohn-Bendit, então com 23 anos, do socialismo libertário, quando era alimentado pela força da insurgência do estudantado e operariado francês. Por mais que isto incomode, não há também motivo de espanto na traição daquelas posições, sob a terrível constrição ensejada pela recomposição autoritária das instituições do grande capital, com força avassaladora sobretudo nas últimas duas décadas.
Em Maio de 1968, Dany, dito “O Vermelho” pelo seu socialismo radical e cabelos ruivos, atacava as instituições que balançavam sob a dura mobilização operário-estudantil-popular. Com o refluxo social que se impôs anos mais tarde, a própria necessidade de manter o protagonismo que as jornadas revolucionárias lhe asseguraram contribuiu certamente para o seu crescente acomodamento à ordem que antes combatera. Se em 68 Dany le Rouge pregava a revolução sobre as barricadas parisienses, hoje ele se esforça para reparar os arranhões feitos nas instituições que o alimentam, cercado pelas múltiplas secretárias e assessores que lhe cabem por direito como deputado e líder do bloco ecologista do Parlamento Europeu. O que, folga dizer, lhe garante igualmente salário que não envergonharia sequer a deputado brasileiro – 250 mil reais ao ano! Fora as tantas outras mordomias vencidas pelos defensores excelentes do grande capital.
A Cohn-Bendit faltou apenas a fibra moral e social para viver a sua vida, coerente com as suas ideias, à margem dos holofotes e das benesses dos serviçais do poder, como fizeram, através do mundo, centenas de milhares de actores, mais ou menos anónimos daqueles sucessos. Cohn-Bendit não praticou, porém, sozinho o acto de contrição interessado. Na França, foram importantes as defecções de lideranças e intelectuais soixante‑huitards, como, entre outros, Alain Finkielkraut, Bernard-Henri Lévy e Stéphane Courtois, convertidos às maravilhas do elogio do capitalismo e do imperialismo.
Na Alemanha não foi diverso ao resto do mundo. No Partido Verde, Cohn-Bendit teve como acompanhante excelente outro líder estudantil de 1968 em Berlim, Joschka Fischer, que, para obter e se agarrar ao poder contra o qual lutara, chafurdou no sangue europeu ao participar como Ministro dos Negócios Estrangeiros do governo de Schröder (1998-2005), da agressão da OTAN, comandada por Bill Clinton contra a população sérvia.
Comandou assim a primeira intervenção da Wehrmacht fora da Alemanha após 1945, precisamente nos territórios de onde fora expulsa havia mais de meio século pela guerrilha popular comunista balcânica. Na época da agressão contra a Jugoslávia, Cohn-Bendit, que saltava do vermelho-negro do socialismo libertário para o verde‑branco do ecologismo pacifista, defendeu disciplinado os bombardeios da OTAN que arrasaram aquele país como imprescindível “intervenção humanitária”.
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* Mário Maestri é doutor em História pela Universidade Católica de Lovaina, Bélgica. É professor do curso e do programa de pós-graduação em História da Universidade de Passo Fundo, no Rio Grande do Sul. Esteve preso, em 1968, quando estudante, e viveu, como refugiado, no Chile e na Bélgica, de 1971 a 1977.
Mário Maestri *
Correio da Cidadania
Daniel Cohn-Bendit acaba de pedir às novas gerações que esqueçam o Maio Francês, já que não mais existiria o mundo contra o qual lutou há quarenta anos. Para não deixar dúvidas sobre o dito, pontificou que aquele «passado morreu» definitivamente, antes de sair em tour mundial para divulgar livro de entrevistas denominado inicialmente com o título lapidar de Forget 68. Negando a contemporaneidade de 1968, Cohn‑Bendit associa-se com destaque ao esforço em reduzir aquelas jornadas a mera mobilização juvenil contra o mundo dos genitores. «Sessenta e oito foi a revolta dos jovens contra o mundo criado pelos seus pais [...] após a guerra, [...] rígido e conservador [...]», pontificou o ex-militante do Movimento 22 de Março, da Universidade de Nanterre. Os novos direitos das mulheres, homossexuais, deficientes, etc., e a consciência ecológica de pós‑68 teriam criado um mundo verdadeiramente novo, tornando anacrónicas lutas velhas de quatro décadas, inadequadas à sociedade que soube recriar‑se permanentemente.
Os sucessos de 1968 foram esforço de ruptura revolucionária da ordem capitalista e de construção de socialismo democrático e revolucionário que garantisse, nos limites das possibilidades históricas, a realização da humanidade. Foram movimentos de rebeldia com epicentros nos EUA, Itália e Alemanha Federal, que alcançaram ápice em 1968 na greve geral dos trabalhadores franceses, desmobilizada e liquidada pelo Partido Comunista Francês. Às jornadas de 1968 seguiram-se duríssimas lutas mundiais entre o capital e o trabalho, com confrontos memoráveis como os do Vietname, Laos e Camboja; do Chile (1969-73); de Portugal (1974‑76); da Nicarágua (1979-1990), etc. Enormes movimentos de insurgências pelo tsunami liberal‑conservador que, sobretudo desde 1989, engoliu através do mundo, com fome pantagruélica, conquistas sociais obtidas nas décadas anteriores.
É precisamente a vigência das reivindicações, esperanças e experiências de 68 que enseja o esforço mundial, fortemente midiatizado, pelo seu arquivamento definitivo. Projecto que se apoia fortemente em muitos dos então jovens protagonistas daqueles sucessos, conquistados sob a dura pressão da derrota histórica dos trabalhadores, pelas benesses, facilidades e seguranças garantidas aos que defendiam com destaque os privilégios contra os quais lutavam no passado.
Os grandes movimentos sociais são normalmente associados a indivíduos tidos como protagonistas excelentes, não raro por conseguirem orientar os sucessos que vivem segundo as suas necessidades e tendências profundas. É quase automática a identificação de Marat e Robespierre à Revolução Francesa, de 1789; de Zapata e Pancho Vila à Revolução Mexicana, de 1910; de Lenin e Trotsky à Revolução Russa, de 1917; de Fidel e do Che à Revolução Cubana, de 1959. Há, porém, jornadas luminares como a Comuna de Paris, de 1871, que passaram à historia sem associação a indivíduos singulares, sobretudo como fruto dos esforços e sacrifícios de milhares de trabalhadores e populares, homens e mulheres – os communards.
Nos tempos actuais, acções multitudinárias são fusionadas a indivíduos, não raro por razões fortuitas e, cada vez mais, pelas necessidades da mídia, transformando-os, mais do que em líderes, em verdadeiros símbolos dos movimentos em questão. Foi o que de certo modo ocorreu com o Maio Francês, ligado fortemente às imagens de jovens como Daniel Cohn-Bendit, Alain Krivine e Jacques Sauvageot que, mesmo através das suas pequenas organizações, pouco ou quase nada influenciaram sucessos que transbordaram rapidamente os marcos da mobilização estudantil, ao serem abraçados fortemente pelas classes trabalhadoras e populares.
A fusão da história a indivíduos tende à qualificação da primeira a partir de actos privados ou públicos dos segundos: actos realizados eventualmente no calor dos sucessos, alguns anos após eles ou até mesmo décadas mais tarde. Essa visão ingénua dos sucessos sociais nasce da compreensão da história como produto da acção de homens providenciais, de naturezas transcendentes ao próprio devir histórico. Para tal percepção, para o bem e para o mal, as acções desses demiurgos contaminariam e definiriam os factos históricos que eles teriam criado.
Não há razão para duvidar da honestidade da defesa, em 1968, de Daniel Cohn-Bendit, então com 23 anos, do socialismo libertário, quando era alimentado pela força da insurgência do estudantado e operariado francês. Por mais que isto incomode, não há também motivo de espanto na traição daquelas posições, sob a terrível constrição ensejada pela recomposição autoritária das instituições do grande capital, com força avassaladora sobretudo nas últimas duas décadas.
Em Maio de 1968, Dany, dito “O Vermelho” pelo seu socialismo radical e cabelos ruivos, atacava as instituições que balançavam sob a dura mobilização operário-estudantil-popular. Com o refluxo social que se impôs anos mais tarde, a própria necessidade de manter o protagonismo que as jornadas revolucionárias lhe asseguraram contribuiu certamente para o seu crescente acomodamento à ordem que antes combatera. Se em 68 Dany le Rouge pregava a revolução sobre as barricadas parisienses, hoje ele se esforça para reparar os arranhões feitos nas instituições que o alimentam, cercado pelas múltiplas secretárias e assessores que lhe cabem por direito como deputado e líder do bloco ecologista do Parlamento Europeu. O que, folga dizer, lhe garante igualmente salário que não envergonharia sequer a deputado brasileiro – 250 mil reais ao ano! Fora as tantas outras mordomias vencidas pelos defensores excelentes do grande capital.
A Cohn-Bendit faltou apenas a fibra moral e social para viver a sua vida, coerente com as suas ideias, à margem dos holofotes e das benesses dos serviçais do poder, como fizeram, através do mundo, centenas de milhares de actores, mais ou menos anónimos daqueles sucessos. Cohn-Bendit não praticou, porém, sozinho o acto de contrição interessado. Na França, foram importantes as defecções de lideranças e intelectuais soixante‑huitards, como, entre outros, Alain Finkielkraut, Bernard-Henri Lévy e Stéphane Courtois, convertidos às maravilhas do elogio do capitalismo e do imperialismo.
Na Alemanha não foi diverso ao resto do mundo. No Partido Verde, Cohn-Bendit teve como acompanhante excelente outro líder estudantil de 1968 em Berlim, Joschka Fischer, que, para obter e se agarrar ao poder contra o qual lutara, chafurdou no sangue europeu ao participar como Ministro dos Negócios Estrangeiros do governo de Schröder (1998-2005), da agressão da OTAN, comandada por Bill Clinton contra a população sérvia.
Comandou assim a primeira intervenção da Wehrmacht fora da Alemanha após 1945, precisamente nos territórios de onde fora expulsa havia mais de meio século pela guerrilha popular comunista balcânica. Na época da agressão contra a Jugoslávia, Cohn-Bendit, que saltava do vermelho-negro do socialismo libertário para o verde‑branco do ecologismo pacifista, defendeu disciplinado os bombardeios da OTAN que arrasaram aquele país como imprescindível “intervenção humanitária”.
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* Mário Maestri é doutor em História pela Universidade Católica de Lovaina, Bélgica. É professor do curso e do programa de pós-graduação em História da Universidade de Passo Fundo, no Rio Grande do Sul. Esteve preso, em 1968, quando estudante, e viveu, como refugiado, no Chile e na Bélgica, de 1971 a 1977.
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