maio 14, 2004

O que é que vem embrulhado em meia tonelada de papel e entregue ao comprador num saco de plástico?
É o artigo do Nuno Crato no Expresso...!

Segue-se um texto escrito por Nuno Crato - matemático e reconhecido divulgador das ciências- no dito semanário sobre a relação entre a GEOMETRIA FRACTAL e a PINTURA de Jackson Pollock.

Jackson Pollock (1912-1956) é mundialmente conhecido pelos seus gigantescos quadros que combinam riscos coloridos, pingos de tinta, espirais extensas e traços ritmados. Mas é igualmente conhecido pela polémica que a sua arte tem gerado. Houve quem dissesse que um macaco poderia pintar telas mais interessantes e quem achasse que era impossível distinguir entre as suas pinturas e riscos puramente aleatórios. Como pintaria esse homem essas telas tão estranhas?
Em 1950, um fotógrafo nova-iorquino chamado Hans Namuth conseguiu que Pollock o autorizasse a fotografá-lo em acção. Combinada a data, Namuth apareceu no estúdio do pintor, um celeiro nos subúrbios de Nova Iorque para onde Pollock se tinha deslocado em 1945, depois de ter vivido durante cinco anos na grande metrópole norte-americana.
Quando chegou à residência do pintor, Pollock disse-lhe que nesse dia, afinal, não havia nada a fotografar, pois tinha acabado de dar os retoques finais numa pintura e não iria começar outra. Levaram-no para o celeiro, onde o quadro jazia no chão, ainda húmido. Ficaram a apreciar a tela. Jackson Pollock começou a dar voltas ao quadro, mas havia algo que visivelmente o inquietava. Namuth não podia imaginar do que se tratava. Poderia faltar alguma coisa ou haver algo a mais naquele amontoado de riscos aparentemente aleatórios? Subitamente, o pintor parou, agitou-se e foi buscar um balde de tinta. Olhou de novo e começou a aspergir o quadro. Namuth começou a tirar fotografias.
Dias depois, o fotógrafo mostrou-lhe as imagens. Pollock e a mulher, a pintora Lee Krasner, gostaram e deram-lhe carta branca para continuar o seu trabalho. Namuth passou longas tardes com o pintor e tirou inúmeras fotografias. Finalmente, convencido que as imagens fixas não conseguiam revelar a complexidade do trabalho de Pollock, fez um curto documentário. O filme tem sido passado vezes sem conta, em exposições, estúdios e na televisão, e é considerado um documento precioso sobre o trabalho do artista. Revela a sua técnica, mostrando que Pollock pintava um quadro por camadas, começando com traços grossos numa cor base. Seguidamente, fazia traços mais finos, produzidos com longos movimentos do braço, deixando cair rios de tinta e salpicos. Finalmente, efectuava movimentos mais curtos, lançando finos riscos e pequenos pingos sobre a tela. As imagens de Namuth revelaram um processo muito complexo e muito pouco arbitrário de construir a pintura.
Recentemente, o físico Richard Taylor, resolveu analisar o processo de pintura de Pollock com instrumentos matemáticos modernos. Taylor, que estudou arte na sua juventude, suspeitava que o apelo visual dos quadros de Pollock tinha algo a ver com a sua semelhança com imagens da natureza, formadas por processos caóticos que produzem fractais. Imaginava que isso fosse derivado de várias peculiaridades do seu processo de pintura.
Ao contrário dos pintores que o precederam, que utilizavam uma tela sobre o cavalete, Pollock pintava sobre uma superfície horizontal e deixava actuar a força da gravidade sobre a tinta. Igualmente ao contrário dos pintores anteriores, Pollock não utilizava os pincéis para produzir pequenos traços controlados, mas sim para deixar cair e para atirar tinta sobre a tela. Há grandes semelhanças, argumentou o físico australiano, com o que acontece na natureza, que salpica as paisagens de relevos e de vegetação.
Para melhor compreender o processo, Richard Taylor construiu um aparelho para deixar cair tinta de forma ritmada. Esse aparelho começou por ser apenas um pêndulo que tinha na ponta uma espécie de regador. À medida que o pêndulo oscilava, deitava tinta sobre uma tela situada no solo, produzindo riscos. Com um movimento dotado apenas de algumas irregularidades, o resultado é uma tela preenchida com riscos relativamente simples.
O físico australiano decidiu depois animar o pêndulo de um movimento caótico. Pêndulos desse tipo podem ser apreciados em vários museus de ciência. Habitualmente são formados por dois sistemas pendulares acoplados. Movem-se de forma complexa e aparentemente descontrolada, com irregularidades impossíveis de prever, apesar de serem causadas por processos físicos deterministas conhecidos. Umas vezes balançam-se lentamente, para imediatamente oscilarem de forma muito rápida. Subitamente, parecem interromper o seu movimento, surpreendendo o observador. Esses pêndulos dizem-se caóticos, pois pequenas alterações das condições iniciais produzem a prazo movimentos radicalmente diferentes. Daí deriva a impossibilidade de previsão das suas posições futuras. Sendo impossível caracterizar de forma absolutamente precisa a posição inicial e as forças que actuam sobre o pêndulo, torna-se impossível prever o seu movimento a longo prazo, mesmo não havendo no sistema nada de aleatório.
Situação completamente diferente é a dos pêndulos normais, como os que se usavam nos relógios de parede. Nestes últimos casos, qualquer que seja a situação de partida tem-se uma ideia bastante precisa do movimento com que o pêndulo estará animado daí a algum tempo. Daí que sirvam para medir o tempo. Se não fosse assim, ninguém poderia confiar nos relógios.
Para dotar o seu pêndulo de um movimento caótico, Taylor construiu um sistema electromagnético que o empurrava periodicamente, mas com período diferente do do próprio pêndulo. Os traços de tinta resultantes desse movimento revelam uma grande semelhança com os traços da pintura de Pollock, conforme se pode apreciar na figura.
Mas o mais interessante é que os traços gerados pelo pêndulo caótico revelam dimensões fractais, ao contrário dos gerados por pêndulos simples. Perceber com precisão o que isso significa não é fácil, pois os conceitos matemáticos que entram na definição rigorosa de fractais são complexos e envolvem a destrinça entre as chamadas dimensões topológica e de Hausdorff-Besicovitch. Mas há uma propriedade geométrica dos objectos fractais que é simples de entender: nesses objectos, os motivos repetem-se de forma semelhante a diferentes escalas. Se olharmos para uma folha de árvore, por exemplo, vemos nervuras que se bifurcam, gerando nervuras mais finas. Se pegarmos numa lupa e observarmos de novo essas nervuras mais finas, voltamos a notar que elas se subdividem, gerando nervuras ainda mais ténues. Se usarmos um microscópio, podemos observar um motivo semelhante. A estrutura de nervuras de uma folha revela características fractais.
Se a folha tivesse uma nervura única e rectilínea, não seria um fractal - esse sistema poderia ser considerado de dimensão um. Mas as nervuras das folhas subdividem-se e multiplicam-se por toda a sua superfície. Se elas enchessem completamente a folha, teriam dimensão dois, pois cobririam o plano. Mas o que se verifica é algo intermédio: à medida que aumenta a ampliação com que observamos a folha, surgem novas nervuras anteriormente invisíveis, constituindo uma rede que quase enche o plano. Pode considerar-se que esse sistema de nervuras tem uma dimensão fractal, com um número situado entre um e dois, tão mais perto de um quanto mais simples for e tão mais perto de dois quanto mais densa for a rede que a ampliação sucessiva revela. Em objectos estatisticamente fractais, como os que aparecem na natureza, não são exactamente os mesmos motivos que ocorrem ao se mudar de escala, mas são motivos com propriedades estatisticamente semelhantes.
Para medir a dimensão fractal de objectos que vivem num plano, pode dividir-se esse plano em quadrados sucessivamente mais finos e verificar como se repetem os motivos à medida que se muda de escala. Foi precisamente isso que Taylor e os seus colaboradores fizeram, obtendo estimativas muito precisas de dimensões fractais nos quadros de Pollock. As conclusões do seu estudo são muito claras: o pintor criava telas com uma dimensão marcadamente fractal e, à medida que aperfeiçoou a sua técnica, foi criando quadros cada vez mais complexos, de dimensão fractal superior.
Em 1943, as pinturas de Pollock tinham uma dimensão fractal modesta, pouco superior a 1. Esse é o caso, por exemplo, de «The Flame» (A Chama), de 1937, que não tem uma fractalidade marcada. Depois disso, quando criou e aperfeiçoou o método de pintura por lançamento de tinta, criou telas de características fractais muito mais vincadas. Esse é o caso, por exemplo, da sua pintura «Reflection of the Big Dipper» (Reflexão da Ursa Maior), de 1947, com uma dimensão fractal de 1,45, valor perto do estimado para estruturas da natureza, como, por exemplo, a costa da Grã-Bretanha.
Jackson Pollock foi explorando sucessivamente a complexidade das suas pinturas.

Na tela «Blue Poles», de 1952, atingiu a dimensão fractal mais elevada de entre as estudadas por Taylor: 1,72. Ao que parece, o pintor estava explorando os limites do que a vista humana poderia julgar esteticamente agradável. Será que esse limite está determinado pela natureza e pode ser revelado pela linguagem da matemática?

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